Todo mundo na região sabe onde é a casa do padre Djacy Brasileiro, bem ao lado da igreja de Pedra Branca. Mas ele pouco fica lá. Seguimos os seus passos na seca da Paraíba
Pedra Branca (Paraíba) - O chapéu largo de palha é
companheiro inseparável. Assim como a fé. “Como missionário e como
cidadão”, como ele mesmo gosta de frisar, o padre Djacy Brasileiro
costuma fazer incursões periódicas pelo Vale do Piancó, um dos recantos
mais secos e pobres do sertão paraibano. Registra tudo com fotos e
anotações, que muitas vezes vão parar em suas contas no Twitter e no
Facebook — ele tem mais de dez mil seguidores. “Não se pode ficar
indiferente ao sofrimento dessa gente. Muitos não têm o que comer. Temos
que denunciar isso e ajudar de algum jeito. Eu só entendo a Igreja se
ela estiver ao lado das pessoas mais sofridas”, professa o pároco de
Pedra Branca.
Ele vem fazendo a sua parte. Em 2008, quando era
padre na Igreja de Bom Jesus, em Sousa, construiu uma grande cruz de
lata e levou-a nas costas, a pé, até Brasília. “Foi um protesto contra o
descaso da classe política em relação aos efeitos devastadores da seca.
E para exigir soluções concretas, como a transposição das águas do Rio
São Francisco”, lembra o padre. Hoje, as obras de transposição estão
paradas em vários trechos, mas ele não desiste. “Eu vejo hoje as pessoas
nas ruas e acho que finalmente há um sentido nos protestos, como se
tivéssemos acordado. É hora de exigir o fim desse sofrimento”, diz Djacy
na sala da casa paroquial, ajeitando o chapéu na cabeça, já de partida
para mais uma incursão. Na parede, uma foto do ídolo Dom Hélder Câmara.
Fogão de lenha no quintal de Luzia ainda com brasa dormida do café que fez mais cedo
Severino Silva / Agência O Dia
Severino Silva / Agência O Dia
Andar com o padre Djacy pelo alto sertão da
Paraíba é constatar o que os mais velhos vêm dizendo: a seca de 2013 é
ainda pior que a de 2012. Os sertanejos já a tratam como uma só. “Os
mais velhos me dizem que esta é a seca mais cruel pela qual já passaram.
Açudes que nunca secaram ficaram secos este ano. Esses relatos me
fizeram ter a consciência da seriedade desta seca. Não choveu nada em
2012 e este ano caiu pouca água. Vem coisa pior pela frente”, acredita o
padre.
Logo no início da estrada de terra que une o
centro urbano de Pedra Branca (onde vivem pouco mais de cinco mil
pessoas) à zona rural, o padre faz questão de mostrar vestígios de dois
cemitérios de animais a céu aberto. Estavam cheios de carcaças até
abril, mas uma chuva de quatro dias levou a maior parte das ossadas. As
que restaram são um triste retrato da seca.
“Vi muitos agricultores chorando. Um me mostrou
uma vaca morta e disse: ‘Padre, ela estava para dar cria, mas morreu
antes, de fome e sede’. Quando o sertanejo chora é porque a situação
está crítica. Em minha peregrinação pelo sertão, algumas vezes voltava e
nem conseguia comer, só lembrando dos animais mortos pelo caminho.
Presenciei um cenário de morte”, conta ele, que é diocesano, mas admira o
espírito franciscano. “A renúncia, a humildade. Uma igreja que se
sensibiliza.”
Nascido na vizinha Igaracy há 47 anos, Djacy
aprendeu cedo a conviver com a seca. Trabalhou na roça dos nove aos 13
anos, quando foi para João Pessoa fazer o Segundo Grau (atual Ensino
Médio). Já então se diferenciava da maioria dos sertanejos por uma
característica que conserva até hoje: a indignação. Depois de estudar
Filosofia, em Maceió, e Teologia, em Teresina, Djacy foi ordenado padre
em 1994, em Itaporanga, já abraçando as causas sociais.
A fome é uma mazela contra a qual o padre se
insurge ferozmente. “A fome existe aqui, digo sem medo de errar porque
vejo”, ele diz. E mostra. Leva a equipe do DIA até a casa de Luzia Leite
da Silva, de 53 anos, a cuja família várias vezes doou alimentos nessa
seca prolongada. Foi ali, no início do ano, que viu pela primeira vez um
tamanduá sendo preparado como refeição. “Foi meu filho mais o vizinho
que caçaram o bicho. A gente não tinha mais o que comer. Dividimos a
carne e durou dois dias. Nunca fomos de caçar animal assim, o padre sabe
que a gente é de bem”, diz Luzia, entre envergonhada e temerosa. Só
fica mais aliviada quando constata que os amigos do padre não são
fiscais do Ibama.
O fogão de lenha no quintal de Luzia ainda tem
brasa dormida, do café que fez mais cedo. Comida para o almoço são duas
piabas, peixes pequenos que o filho trouxe ela não sabe de onde. “Para
hoje é o que temos. Amanhã, não sei”, diz ela, abaixando os olhos, como
se tivesse vergonha da penúria. São cinco pessoas na casa para dividir
as duas piabas. “Eu recebo o Bolsa Família, mas tô com dívida na bodega,
o homem não quer mais saber de fiado”, conta Luzia. O padre pede para
que ela passe mais tarde na casa paroquial. “Vamos arranjar algum
mantimento para amanhã, com fome vocês não podem ficar”. Os dois se
abraçam no quintal. Fincada no alto da cerca feita por paus secos está
uma ossada de cabeça de vaca. Foi a última a se perder na seca. Parece
um retrato na parede da sala.
Djacy postou foto do tamanduá abatido em suas
contas do Twitter e do Facebook. O choque das imagens correndo pela
internet faz parte de uma estratégia de guerrilha rural para ele. “Uso
as redes sociais para divulgar essas incursões e pedir ajuda. Já
conseguimos muita coisa. Mês passado vieram sete toneladas de alimentos
de João Pessoa. Quando a gente faz a distribuição, vem multidão das
zonas rurais. O povo não vem atrás de perfume, de roupa. Vem atrás de
comida. É gente com fome.”
O peregrino segue seu caminho. A próxima parada é
a casa do lavrador Clóvis Clementino de Carvalho, de 77 anos. Ele
guarda na memória secas implacáveis, como as de 1958, 1970, 1976 e 1993.
Para cada uma, Clóvis destaca uma lembrança doída, um aperto de fome,
até espécie de saudade. Superou todas e está vivo para contar. Na sala
de casa, além de uma rede, fotos de família nas paredes e uma sela para a
montaria, estão empilhadas 50 sacas de milho. “Fiz empréstimo em banco e
com amigos para comprar. Essas são as que restaram para encarar a
estiagem que vem pela frente. Outras 120 sacas já foram embora”, diz
Clóvis.
O velho sertanejo confirma a premonição: o pior
vem pela frente. “Minha primeira seca foi a de 1942, eu tinha seis anos.
Enfrentei muitas, mas a deste ano superou todas, até os poços secaram.
Comprei ração para salvar os animais, mesmo assim perdi duas vacas.
Tenho seis garrotes, tão magros que não há quem compre”. Depois olha
para o padre, que está quieto escutando as histórias: “Esse padre é um
guerreiro. O que ele fez e faz para ajudar essa gente daqui não é pouca
coisa. Ele olha por menino, por velho, por mulher, por desvalido. Vem
comer milho assado com a gente, é homem sem luxo nem vaidade. O dia que
esse padre for embora, o povo aqui chora.”
Essas lágrimas, os sertanejos da região podem
guardar para outras tristezas. O padre não cogita outra vida que não
peregrinar pelas vertentes secas da Paraíba. “Quase todos os dias eu vou
à zona rural. É o meu trabalho. Pastor não pode ficar de braços
cruzados diante de um flagelo. Seria entrar na contramão do Evangelho”.
As consequências da seca vão perdurar por muito tempo no Vale do Piancó.
Nas suas rezas, sob o altar da igreja de Pedra Branca, ele pede saúde
para continuar a caminhar e que Deus ilumine o povo do semiárido “para
que ele se liberte da alienação política”. Mas o padre sabe que só as
rezas não adiantam – os sertanejos rezam todos os dias. Por isso, Djacy
faz jus ao nome da paróquia que comanda, como se fosse ao mesmo tempo
uma sina e um chamado a perseverar, dia após dia: a santa no altar é
Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.
Portal IG
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