Pois é, trata-se de um artigo cômico,
engraçado, mas, ao mesmo tempo, polêmico, crítico e revelador. Pois, nesse diálogo
com alguns defuntos, há toda uma revelação: a hipocrisia diante dos que morrem.
Faz tempo que venho conversando com alguns mortos,
mesmo ainda nos seus ataúdes. Sozinho, sem ninguém, aproveitei para dar uma cutucada
em cada morto. Todos eles foram solícitos. Puxei conversa. Queria saber deles o que achavam do choro, do clamor,
das lágrimas, faixas, discursos de homenagens por parte de tantas pessoas que
os cercavam.
Foram diversos defuntos. No início tive medo, arrepio,
de estar ao lado de gente morta, cada morto era de assombrar. Pensei sair em disparada.
Mas fiquei, tive coragem. E fui em frente. Tinha hora que não sabia se chorava,
ria, ou corria.
Entrei em processo de empatia com cada
falecido. Suas palavras comoviam-me, deixando-me triste, pensativo, revoltado.
Era tudo o que eu queria saber de sua vida, de sua história, de sua família, de
seus amigos etc. Ouvia atentamente a voz embargada desses tristes finados. Sua
voz era embargada, de seus olhos saiam lágrimas. Suas mãos tocando nas minhas,
como a dizer: fique perto de mim, não me deixe sozinho. Eita, que medo! Mãos de
defuntos nas minhas. Mãos geladas. Quase corria!
Vou consignar tudo o que ouvi dos falecidos.
São palavras fortes, chocantes, reveladoras, emocionantes, tristes etc. Vale
salientar que os nomes dos falecidos são fictícios, exatamente para preservar
sua identidade. Caso contrário, eles vêm me buscar de madrugada. Ai estou
lascado mesmo.
Defunto
Chico Zé
-Padre Djacy, passei a vida sozinho, sem
ninguém me visitar, só porque morri, minha casa tá cheia de gente. Nunca vi
isso na minha vida.
-Quando eu era vivo, ninguém queria saber de
mim, agora é todo mundo olhando pra mim, com cara de choro. Vão pro inferno, magote
de bestas.
-Tá vendo padre, hoje eu sou querido, só porque
morri.
Defunto
Zeferino
-Oxe, aqui tem tanta gente, tanta gente, que
mais parece um carnaval. Nunca vi esse povo na minha vida. É cada um.
-Nunca ninguém me deu uma roupa, um sapato, um perfume,
só porque morri agora é roupa nova sapato novo e toma perfume.
-Quando eu estava doente, num hospital, ninguém
me visitava, meus familiares e amigos me abandonaram lá no hospital. Eu vivia
na maior solidão, na maior tristeza. Ninguém ia me ver. Agora, porque morri, é
todo mundo aqui me olhando-me beijando, passando a mão na minha cabeça, me cheirando.
Agora é tarde, seu padre. Eu queria isso era quando eu estava doente, lá no
hospital.
-Padre, quando fiquei velho, meus filhos não se
importavam comigo, não estavam nem aí comigo. Não cuidava de mim. Eu sentia
tanto desprezo, tanto desgosto, que passava horas e mais horas chorando. Agora,
depois que morri, estão todos aqui desesperados, gritando: pai, a gente te ama,
pai agente te ama. Oxe, só agora, depois que morri? Por que não cuidavam de mim,
quando eu estava vivo? Agora é tarde, meus filhos.
-Tá vendo, até a minha ex-mulher, que não tinha
pavor deu, tinha ódio, raiva, está aqui me olhando com os olhos molhado de lágrimas.
Oxe, eu não sabia que morrer e ficar dentro de um caixão era tão bom.
Defunto
Chico Peba.
-Padre Djacy, só porque morri, o que tem de
gente chorando em torno do meu caixão não é brincadeira. Quando eu estava vivo,
ninguém me conhecia. Nem minha família estava aí comigo. Ninguém se lembrava de
mim.
-Esses meus filhos que estavam gritando,
desesperado, derramando tantas lágrimas, porque morri, é tudo hipocrisia.
Quando eu estava doente, me contorcendo de dores e mais dores, eles não queriam
saber de mim. Iam para as festas e me deixavam gemendo, gritando
desesperadamente. Pra que chorar por mim depois que morri, hein, seu padre?
Defunto
Macaíba
-Quando eu estava preso, na maior solidão da cadeia,
ninguém aparecia lá, agora vem esse pessoal da igreja rezar por mim. E por que
não me visitava quando eu estava preso? Por que não iam a cadeira levar para
mim um pouco de comida? Só agora, depois que morri vem rezar, chorar? Eu
precisava de vocês, da solidariedade de vocês, quando eu me encontrava na maior
tristeza da vida, lá na cadeia.
-Antes de morrer, eu era alcoólatra, bebia muito,
vivia jogado na rua, nas praças, nas calçadas. e pessoas olhavam para mim com indiferença,
com novo. Eu era tratado como bicho, um Zé da vida. Muita gente da igreja, que
ia pra missa todo dia não se importava comigo, falava mal de mim, tinha nojo de
mim. Não tentaram me ajudar para sair dessa vida. Agora, depois que morri, lá
vem essa gente do padre rezar pra minha alma. Hipocrisia da porra!
Defunta
Léca
-Padre Djacy, tá vendo essa gente chorando,
desesperada, soluçando, diante deste meu caixão? Essa gente, seu Padre, quando
eu era viva, vivia falando mal de mim. Esse povo que está aqui chorando,
colocando flores sobre o meu corpo morto, falava mal de mim, dizia que eu não
prestava, eu era isso, aquilo e tantos outros adjetivos. Depois que morri, agora é chorando, colocando
flores, me homenageando. Eita hipocrisia da bexiga. Só porque morri agora virei
santa. Como é bom morrer pra ser santa.
Defunto
Brás.
-No meu velório trouxeram de tudo, coisa que
nunca vi: pão, bolacha, bolo, salgado, refrigerante, creme de galinha. Agora,
quando eu estava vivo, eu vivia passando fome, eu vivia na miséria, mas ninguém
me ajudava, nunca ninguém quis me tirar da miséria. Agora, só porque estou
morto neste caixão, inventaram de trazer comida boa. Pra quê, hein? Defunto não
come. Por que não mataram minha fome quando eu era vivo?
-Até o padre veio me visitar, rezou e jogou
água benta em mim. Esse padre, quando eu vivia na miséria, no abandono,
passando fome, nunca me deu um bom dia, uma boa tarde. Nunca teve compaixão de mim.
Nunca procurou saber sobre o meu sofrimento, minha miséria. Só porque morri, lá
vem ele rezando por mim. Eu queria desse padre era reza e ajuda, solidariedade,
quando estava ainda vivo.
Defunta
Biba
-Tá vendo esse chororô, seu vigário? Não é por
amor a mim não, é porque não tem mais a boquinha da minha aposentadoria. Eles
estão chorando não é porque morri, mas é porque vão ficar sem o meu
dinheirinho.
-Esses netinhos, nem todo seu vigário, que
estão chorando porque morri, nunca cuidaram de mim, não ligavam para mim, não
queriam saber de mim. Só porque morri agora vem chorando. Eita hipocrisia!
Valei-me meu padim Ciço. Ah, nem me lembrava, eu morri.
Defunto
Zé Biró.
-Eita doutor hipócrita! Eu era empregado desse
doutor na sua empresa. Ele, a mulher dele e os filhos viviam me humilhando no trabalho,
eles tinham raiva de mim. Eles me tratavam com arrogância. Agora veja: só
porque morri, estou neste envelopão, eles vieram aqui, derramaram lágrimas. Oxe,
o tal do doutor fez até um discurso me elogiando. Vão pra o inferno, bando de hipócritas.
Eu queria era ser tratado como gente quando era vivo e trabalhava na empresa dele.
Pra que esse discurso? Já estou morto. Discurso não me devolve a vida.
Defunta Bubu
- Só porque morri, agora é todo mundo me
chamando carinhosamente pelo diminutivo. É Buiquinha pra cá, Buiquinha pra lá.
Essas pessoas que agora choram e me chamam carinhosamente pelo o nome são todas
falsas. Em vida, nunca me trataram bem, com carinho, com amor, com dignidade.
Adoeci, nunca perguntaram como eu ia. Cara de pau, porque morri, agora é Buiquinha
morreu, Buiquinha vai fazer falta...
Defunta
Birita
- Eita que minha casa tá lotada de gente. Morri
com oitenta anos. Em vida, nunca vi minha casa assim. Não recebia visita de
ninguém. Eu vivia sozinha, sem ninguém. Os meus vizinhos não vinham me visitar,
nem minha família. Depois que fechei os olhos, minha casa tá lotadinha. Oxe, depois
que morri não adianta mais. Isso é hipocrisia, é falsidade!
Defunto
Pinto
-Depois que morri é tanto elogio. Estão dizendo
assim: Pinto era bom, pinto era trabalhador, Pinto era sincero, Pinto era honesto,
Pinto era educado, Pinto era humilde, Pinto era isso e aquilo. Agora, seu padre,
quando eu era vivo, nunca ouvi um elogio para aumentar minha autoestima. Muitos
desses que estão me exaltando tinham raiva de mim, falavam mal de mim. Vão
mentir e ser hipócritas no inferno, bando de falsos.
Defunto
Tapioca
-Estão celebrando missa do meu corpo presente.
Nunca vi tanta gente. É tanta reza, tanta homenagem, tantas emoções. Tudo isso
é falsidade, hipocrisia. Vejam, só, seu padre:
-Vou começar pelo padre. Esse padre, sabendo da
minha vida, do meu sofrimento, das minhas dores, nunca foi lá em casa, nunca me
ajudou nem sequer com uma palavra,
-Essas beatas que estão cantando, rezando, chorando,
também nunca me visitaram.
-Esse povo que chora, nunca procurou saber do
meu sofrimento, da minha doença.
-Nunca vi tanta hipocrisia na minha vida de
defunto.
Defunto
Picolé
-Meu Deus! Eu num caixão bonito, elegante e
caro. Acho que este caixão custou uma fortuna. Foram meus filhos que compraram.
Tudo bem. Até agradeço. Mas quando eu era vivo, nunca um filho meu chegou para
dizer assim: pai, comprei essa rede boa, bonita, para o senhor. Eles nunca
ligaram para mim. Tem nada não!
Defunto
Zé Caju.
-Eita hipocrisia, falsidade, desses meus filhos.
Todos chorando porque morri. Agora amanhã, pode aguardar seu padre, todos eles
vão estar brigando, se matando,pela herança que vou deixando, frutos do meu
suor.
-Essa minha família está aqui desesperada,
chorando, mas digo uma coisa com toda verdade: todos estão pensando como vai
ficar a minha terra, as casinhas que eu tenho. Eles estão pensando é na
herança. Quando eu estava vivo, não estavam nem aí comigo.
-A briga vai ser feia por causa da herança. O
que vai ter de filhos, netos, noras, genros, brigando pelo que deixei não será
brincadeira. Que Deus ponha a mão no meio para não haver coisa pior.
Defunta
Zefa
-Diabo é isso na minha cara? Meteram pó na
minha cara. Pintaram minhas unhas, botaram um negócio no meu cabelo, e até
perfume. Oxe, só porque virei finada? Antes ninguém se preocupava com o meu
rosto estragado, com minha pele ressecada e com a minha higiene pessoal. Não
sabia que era bom morrer pra ser ficar tão bem arrumada. Mas por que fizeram
isso depois que morri? Valha, minha Nossa Senhora da Boa Morte!
Defunto
Flor.
-Oxe, nunca vi você chorando por mim, e agora
você está em pranto porque morri. Vai ser falso no inferno, seu Você nunca me
ajudou em nada. Você era meu vizinho, ouvia de madrugada os meus gritos de
tanta dor, e você não vinha me socorrer. Pare de chorar e vá pedir perdão,
amigo. Seu choro é choro de falsidade.
Defunto
Pedoca
-Esse choro todo em torno do meu corpo neste
preto caixão não é porque morri, é remorso. E remorso pesa na alma, na
consciência.
Quer ser
bom? Quer ser homenageado? Quer ser
chamado pelo diminutivo? Então morra!
Padre Djacy Brasileiro, em 18 de janeiro de 2016.
E-mail: padredjacy@hotmail.com
Twitter: @Padredjacy
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