“Dizem que a vida é para
quem sabe viver, mas ninguém nasce pronto. A vida é para quem é
corajoso o suficiente para se arriscar e humilde o bastante para
aprender”, essa frase de Clarice Lispector poderia ilustrar a trajetória
da bibliotecária da Universidade Estadual da Paraíba, Ana Lúcia Leite,
desde que um incidente inexplicável a fez perder a visão aos 20 anos de
idade e mudou o rumo de sua vida, fazendo surgir a coragem, para superar
as barreiras que surgiram, e humildade, para reaprender a viver com as
limitações impostas pela deficiência visual.
A paraibana, natural do
município de Aguiar, localizada na região do Vale do Piancó, foi dormir
enxergando e acordou cega, após um descolamento de retina que nenhum dos
médicos consultados na época conseguiu explicar a causa.
“Eu entrei numa
depressão profunda, não via mais sentido na vida. Essa fase eu julgo
como a mais difícil da minha vida, eu tive que reaprender tudo
novamente, foi muito difícil”, relembra Ana Lúcia.
Após a perda da visão a
jovem, que até então não ia além dos limites da cidadezinha do interior
em que vivia, partiu com toda a família para capital paraibana com a
perspectiva de encontrar apoio e reaprender a viver com as novas
limitações. “Na cidade onde morávamos a escola só oferecia ensino até a
8ª série. Quando terminávamos era preciso ir para uma cidade maior para
continuar estudando. Como eu não tinha coragem de partir sem minha mãe
eu já tinha desistido de seguir os estudos. Mas, quando eu perdi a
visão, minha mãe, professora aposentada, resolveu procurar uma forma de
me apoiar para que eu pudesse continuar vivendo e nos mudamos pra João
Pessoa. Essa mudança foi boa para meus oito irmãos, que tiveram uma
oportunidade de estudar e crescer na vida. Por intermédio de uma vizinha
ficamos sabendo do trabalho do Instituto dos Cegos e lá eu aprendi a
viver com essa minha limitação. Até então eu não me aceitava cega, e só
através do Instituto e da FUNAD (Fundação de Apoio ao Deficiente), eu
passei por uma reabilitação, aprendi o sistema braile em uma semana e
voltei a ler novamente, aprendi a usar as tecnologias e iniciei uma nova
trajetória em minha vida”, recorda.
Ana Lúcia destaca que,
após a perda da visão passou por uma ressignificação da vida e dos
valores que tinha, aprimorou os outros sentidos e procurou superar as
dificuldades buscando o lado bom da vida que ela poderia desfrutar. “É
uma diferença imensa! Além da questão de limitação, tem o colorido da
vida que a gente não vê, mas, em compensação, a gente começa a perceber
coisas que quando enxergamos não percebemos. Eu amo o mar, eu me sinto
bem quando eu caminho, mergulho no mar, e tem coisas que eu sinto hoje
que na época que eu via eu não aproveitava. Eu só me prendia ao visual,
hoje eu paro pra sentir a brisa, o cheiro das coisas, a gente desenvolve
os outros sentidos. Além disso, antes eu era impaciente, eu não tinha
tempo de parar, ajudar as pessoas, só queria curtir a vida. Depois que
eu ceguei eu aprendi a ter mais paciência, a escutar mais as pessoas e
eu me sinto mais útil hoje em dia”, avalia Ana Lúcia.
Além das mudanças de
perspectiva diante da vida e limitações físicas, a bibliotecária lembra
que sofreu com o afastamento de amigos, namorado, que não sabiam como
conviver com a nova realidade. “A maioria dos amigos se afasta. Quando
te vê ficam com pena, chorando, eram companheiros de lamentação”,
afirma.
No instituto dos cegos
Ana conheceu o seu atual marido, cego desde os 6 meses de idade, por
quem sentiu o que chama de “amor à primeira voz”. Casou e teve um filho,
hoje com 14 anos de idade. Mas, o caminho de superação de Ana Lúcia não
se restringiu à vida pessoal. Após descobrir que era possível estudar e
trabalhar mesmo com as limitações a jovem deu prosseguimento à carreira
acadêmica e conquistou seu espaço profissional no mercado.
“Fiz um teste no
Instituto de Educação da Paraíba, fui aprovada e terminei o pedagógico.
Prestei vestibular na Universidade Federal, para o curso de
Biblioteconomia. Escolhi esse curso justamente porque nessa época, em
1994, tinha poucos livros específicos para o deficiente visual, não
existiam bibliotecas em braile, acervos acessíveis. Já na faculdade eu
encontrei professores muito bons, com interesse de passar conteúdo, que
acreditavam no meu potencial, mas, eu também enfrentei muitas barreiras,
tanto arquitetônicas como atitudinais. Alguns professores não
acreditavam que, por eu ser cega, eu poderia realizar algumas tarefas ou
ir mais longe. Eu imaginava que na academia iria encontrar pessoas com a
cabeça mais aberta e que soubessem lidar com as diferenças, o que foi
um engano, uma decepção grande. Outra decepção foi em relação ao acervo.
Eu achava que na universidade ía ter um acesso melhor à informação, mas
não tinha, o setor braile era limitado, não existia um único livro na
minha área que fosse adaptado ao meu acesso”, lembrou.
Apesar das dificuldades
Ana Lúcia conseguiu concluir a graduação em Biblioteconomia, partindo
logo após a defesa da monografia para a maternidade, onde nasceu seu
filho Gabriel, o que ela chama de “melhor diploma” que poderia
conseguir. Também cursou a Especialização em bibliotecas escolares e
acessibilidade pela Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), na qual desenvolveu
um Trabalho de Conclusão de Curso sobre Tecnologias Acessíveis ao
deficiente visual; e especialização em Psicopedagogia pelas Faculdades
Integradas de Patos (FIP).
No campo profissional
atuou com Telemarketing, em Bibliotecas de Instituições públicas do
Estado, organizações não governamentais, buscando organizar os acervos e
torná-los acessíveis. Foi professora de Informática na Fundação Centro
Integrado de Apoio ao Portador de Deficiência (FUNAD) de 1996 a 2007. Em
2007, prestou concursos para atuar como docente nas prefeituras de João
Pessoa e Bayeux, e na UEPB. Foi aprovada em todas as seleções, mas,
optou pela carreira de técnica administrativa da UEPB, onde está desde
2008. Na instituição realiza um trabalho com a recuperação, organização e
disseminação acessível da informação através do uso do serviço Braille e
das ferramentas tecnológicas para o acesso à informação.
Atualmente, Ana Lúcia
concilia o trabalho na UEPB com as atividades no Instituto dos Cegos da
Paraíba, onde está desde 1997 e exerce a função de vice-presidente.
Tanto na UEPB, com a busca de formas de tornar o acervo da biblioteca
acessível, como no Instituto dos Cegos, auxiliando pessoas cegas na
reabilitação, Ana Lúcia segue lutando por melhores condições de vida
para esse grupo que, de acordo com dados do Censo do IBGE de 2010,
abrange 18,8% da população brasileira.
Uma das bandeiras
defendidas pela bibliotecária é o fornecimento de livros em formato
digital, algo que é permitido para uso exclusivo de pessoas com
deficiência visual e facilitaria os estudos e o acesso ao acervo por
parte desse público. “É obrigação de todas as bibliotecas serem
acessíveis a todos, e eu tenho desenvolvido alguns projetos e buscado
formas de diálogo com os gestores no intuito de viabilizar esse
objetivo”, destaca.
A bibliotecária
responsável pela Biblioteca do Campus V, em que Ana Lúcia trabalha,
Liliane Braga, enfatiza o empenho e dedicação da servidora que é querida
pelos colegas e se tornou um exemplo para todos. “Ela é muito
batalhadora, está sempre de bom humor, e nos fez perceber o quanto
precisávamos melhorar nosso espaço e o nosso acervo para pessoas com
deficiência. Hoje todos nós estamos junto com ela nessa luta por
acessibilidade”, afirmou. A auxiliar de biblioteca e amiga, Gizele
Martins, acrescenta que, “mesmo diante da falta de sensibilidade de
algumas pessoas ao lidar com a colega, Ana nunca se deixou abalar e
seguiu encorajando a todos a superar os problemas”.
Ana Lúcia se emociona ao
falar do apoio que recebe da equipe de colegas de trabalho, que são o
alicerce para que ela consiga crescer cada dia mais. “Esse grupo é
fantástico! Choram comigo, lutam comigo, me auxiliam no que preciso, sem
eles tudo seria mais complicado”, analisa. A bibliotecária destaca
alguns planos para a vida profissional, acadêmica e pessoal, que incluem
o principal: ser feliz. “Os obstáculos sempre vão existir, cabe a gente
buscar forças pra continuar. Eu acredito que se alguma coisa acontece
com a gente não é por acaso. Portanto, precisamos ter força de vontade,
amigos verdadeiros e assim podemos crescer, ser felizes e fazer feliz
quem está perto da gente”.
Fonte: UEPB
Nenhum comentário:
Postar um comentário